Levo dentro da bolsa uma coleção de poemas para usar de bote salva-vidas sempre que me bate a necessidade de lucidez. Um deles, do T.S. Eliot, enuncia que para chegar àquilo que você desconhece é preciso percorrer o caminho do não-conhecer. O poema – que, de tão lindo, não tenho coragem de traduzir - diz assim:
“In order to arrive at what you do not know
You must go by a way which is the way of ignorance.
In order to possess what you do not possess
You must go by the way of dispossession.”
Para conhecer o bloqueio criativo, precisamos caminhar pelo caminho do bloqueio criativo. O poema do T.S. Eliot é sem promessas - o texto não diz que para chegar ao conhecimento precisamos atravessar o desconhecer. A mensagem é a de que precisamos andar pelo desconhecer para chegar ao próprio desconhecer.
A estrada do bloqueio criativo é feita de folhas secas profundamente mudas que dão nervoso na barriga só de olhar. Árvores assombradas com galhos retorcidos criam um túnel onde cada passo é uma abismal página em branco.
Começo esta edição tomando refúgio neste poema que é um poema de quem se entrega ao caminho - ou à escrita e suas possibilidades -, simplesmente.
Porque temos bloqueio criativo?
Não sei. Minha teoria é a de que eles aparecem por um milhão de razões diferentes.
Pode ser, por exemplo, que o texto que você começou já não esteja mais falando com você. Sabe aquela ideia genial? Pois é, não funcionou para um romance. Talvez sirva para um conto.
O bloqueio pode acontecer quando a gente precisa de novas referências
ou quando o cérebro cansou e é hora de sair para caminhar.
Durante a escrita, às vezes acontece de um personagem tocar algum tema que nos machuca. Às vezes dá medo do texto ficar uma merda e a mão trava.
Meu último bloqueio criativo durou seis anos.
Meu querido bloqueio criativo
Esta é uma temporada bonita porque foi desejada por muito tempo. Estou me preparando para publicar meu segundo livro - um romance autobiográfico com o título 108.
Cento e oito é o número de contas de um rosário budista de preces. Meu livro tem 108 capítulos pequenos. Cada capítulo é uma conta, o que faz sentido porque o romance trata da história de uma mulher que deixa a carreira importante na repartição pública em Brasília para viver permanentemente em um ashram (espécie de monastério) em Portugal.
A história é uma ficção na qual a única personagem de nome verdadeiro sou eu – a protagonista – e a única localidade verídica é Brasília. Todas as outras personagens, lugares e instituições são recriações ficcionais baseadas na minha própria história.
Pois é: eu deixei a carreira no Planalto Central em 2018 para viver num monastério.
O plano era terminar o manuscrito em nove meses, mas 108 me tomou seis anos durante os quais escrevi muito e intensamente dentro de um submarino apertado no qual cada parágrafo custava a aparecer.
Comecei os primeiros rascunhos em 2017, quando ainda nem tinha saído do Brasil. No final de 2018, ao fim do meu primeiro ano vivendo no monastério, tirei um mês de férias para fazer uma residência artística na Islândia. Sei lá; quem sabe trocando de ares o manuscrito ia para frente.
Tudo que consegui encontrar em Reikjavik foi o cantor do Sigur Rós tomando um café perto da minha mesa numa tarde de sábado e a Bjork discotecando de surpresa numa casa noturna. De texto, mesmo, não veio nada.
Foram trinta dias de inverno ártico na companhia da irredutível página branca como a neve.
Onde estava o meu bloqueio?
Depois de três anos tentando superar a experiência de escrever tendo que tirar leite de uma pedra existencial eu
parei.
Foi uma professora de escrita criativa que decifrou o enigma, este livro aí que você está escrevendo é difícil, hein?
Claro que era. Como é que eu não tinha percebido?
Com a ajuda daquela minúscula observação, consegui ver o problema. O livro era difícil mesmo.
É que eu queria contar a experiência de alguém que ia viver num ashram, mas ashram é um lugar onde não acontece nada. Todo dia é igual; as experiências são internas. Dentro de mim aconteciam transformações enormes enquanto eu vivia no monastério. Encontrar a própria mente várias horas por dia é uma experiência (muito) selvagem. Às vezes alguém ligava naqueles meus dois anos monásticos:
- E aí, como que tá?
, e a minha única resposta possível era esta
- Tá tudo bem.
Não havia o que contar. A ausência de notícias ficava ainda mais óbvia diante das mil novidades que se desdobravam no mundo dos meus amigos. Eles tinham filho, compravam casa, vendiam casa, pais morrendo, novos cachorros, novos gatos, dificuldades no trampo
- E aí, como tá?
- Tá tudo bem.
Com o tempo eles pararam de ligar.
Eu também.
Como transformar o deserto em livro?
Atravessando o bloqueio
O bloqueio criativo é desconfortável, mas apesar de terrível traz mensagens valiosas se a gente tiver paciência para escutar. São mensagens que nos informam sobre as coordenadas geográficas do que nos bloqueia, localizações do nossos traumas e antídotos possíveis para lidar com a paralisia.
Ao longo dos seis anos, tentei várias estratégias para lidar com meu bloqueio criativo. Elas tiveram graus variados de eficácia. Uma das mais importantes foi escrever todos os dias em fluxo, ou pelo menos quase todos os dias, e já falei um pouco sobre este método em alguns textos, como este e este.
Outro recurso que me ajudou foi ler, e é sobre isto que eu quero falar agora.
Sobre o 108: tivemos um final feliz. O manuscrito está finalmente nas mãos da revisora e o lançamento vai acontecer no primeiro semestre do ano que vem. Vou avisando por aqui.
Livros para ler, livros para evitar
É isto: ler.
Na tentativa e no erro, notei que a escrita vinha mais fácil quando eu lia outros autores. Notei, ainda, que havia duas categorias de livros que me ajudavam a desempacar.
Em primeiro lugar, me ajudaram os livros que tinham afinidade temática com o romance que eu estava escrevendo.
Nesta categoria estão os livros (de ficção e não-ficção) contando histórias de monjas, monges, lamas, santos andarilhos e afins. Quero citar aqui A Caverna na Neve, sobre a vida da monja britânica Tenzin Palmo e seus doze anos numa caverna nos Himalaias, e o maravilhoso A step away from Paradise, ainda não lançado no Brasil, que é a história de um lama budista que liderou uma excursão nos Himalaias em direção a Shangri-La.
Estea categoria de livro me colocou em contato com o universo a respeito do qual eu estava escrevendo. Lendo, eu era mandada de volta à atmosfera do mundo monástico - aos seus códigos, às suas dificuldades, às minhas dificuldades, à minha memória.
Uma segunda categoria de leitura consistia em livros cuja escrita me inspirava. Mesmo que não tivessem nada a ver com o meu tema, eles me davam pistas de um mundo linguístico desejado ou familiar. Escolher estas leituras sempre foi algo instintivo, sinto que o meu próprio livro devia ir nesta direção.
Nesta categoria estão os livros de memória da Natalie Goldberg (adoro a honestidade vibrante dela) e Porque a criança se cozinha na polenta, narrado do ponto de vista de uma criança que ao longo do livro vai virando adolescente. A voz da narradora-protagonista foi um espelho para que eu pudesse enxergar a minha personagem e a sua inocência de lançar-se à aventura monástica sem qualquer tipo de experiência.
Finalmente, incluo na segunda categoria as poesias japonesas de três linhas - os haikus. Improvável, não? Mas sim. O que estas poesias me trouxeram foi uma espécie de atmosfera, uma amostra textual minúscula capaz de criar mundos. Elas foram tão poderosas que decidi fazer capítulos de duas linhas com mini-textos inspirados em haikus para criar paisagens emocionais no 108.
Por fim, houve livros que deliberadamente evitei durante a escrita do livro. Não é que fossem ruins: é que eles falavam a outros espaços do meu espírito - a lugares que eu não queria visitar durante a escrita porque eram poderosos demais e me arrastariam consigo.
Só depois de terminar o manuscrito é que li o incrível Dune, por exemplo, porque já intuía que o poder do mundo criado pelo Frank Herbert iria me tirar do meu centro.
Literatura e linhagem
Entendi na escrita do 108: se você quer escrever, é bom ler.
Quando leio, uma linha fina me liga ao universo da escrita e às suas criações. Nós, quando escrevemos, ocupamos um lugar nesta linha. A inspiração é uma força misteriosa; hoje em dia tenho a impressão que ela é mais uma experiência a ser atravessada do que uma pergunta esperando respostas.
Noto que meu universo interno se expande e que as ideias ficam ativas quando estou povoada por um conjunto de referências que vem do texto de outras pessoas que escreveram antes de mim.
Quando leio certos livros, entro no que decidi chamar de estado de escrita. É como se eu regasse o jardim da minha própria criatividade, aceitasse viver dentro da dimensão criada pelos escritores e me comunicasse com eles por dentro da linguagem e da minha própria escrita.
O meu livro do momento é A mão esquerda da escuridão, da Ursula Le Guin. E você, o que está lendo agora? Conta pra mim nos comentários:
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Frank O Hara>
Uma Coca-cola com Você é ainda melhor... Frank O'Hara
Uma Coca-cola com Você
é ainda melhor que uma viagem a San Sebastian, Irun,Hendaye, Biarritz, Bayonne
ou que ficar enjoado na Travessera de Gracia em Barcelona
em parte porque nessa camisa laranja você parece um São Sebastião melhor e mais feliz
em parte porque eu gosto tanto de você, em parte porque você gosta tanto de iogurte
em parte por causa das tulipas laranja fluorescente contra a casca branca das árvores
em parte pelo segredo que nos vem ao sorriso perto de gente e de estatuária
é difícil quando estou com você acreditar que existe alguma coisa tão parada
tão solene tão desagradável e definitiva como estatuária quando bem na frente delas
na luz quente de Nova York às quatro da tarde nós estamos indo e vindo
de um lado para o outro como a árvore respirando pelos olhos de seus nós
e a exposição de retratos parece não ter nenhum rosto, só tinta
de repente você se surpreende que alguém tenha se dado ao trabalho de pintá-los
olho
pra você e prefiro de longe olhar para você do que para todos os retratos do mundo
exceto talvez às vezes o Cavaleiro Polonês que de qualquer maneira está no Frick
aonde graças a Deus você nunca foi de modo que eu posso ir junto com você a primeira vez
e isso de você se mover tão bonito mais ou menos dá conta do Futurismo
assim como em casa nunca penso no Nu Descendo a Escada ou
num ensaio em algum desenho de Leonardo ou Michelangelo que costumava me deslumbrar
e o que adianta aos Impressionistas tanta pesquisa
quando eles nunca encontraram a pessoa certa para ficar perto de uma árvore quando o sol baixava
ou por sinal Marino Marini que não escolheu o cavaleiro tão bem
quanto o cavalo acho que eles todos deixaram de ter uma experiência maravilhosa
que eu não vou desperdiçar por isso estou te contandoFrank O'Hara
muito precisa essa edição. é isso. estou lendo, hum, livros de crítica literária. possuem sua beleza também ☺️