Kali Ma, Mahakali, Poderosa mãe cósmica,
Ajude-me a aceitar o tempo. Ajude-me a aceitar a passagem das pessoas que me deixaram e que eu deixei. Ajude-me a aceitar os lugares e os amigos que tive que abandonar. Ajude-me a aceitar com altivez a porta sem volta, o desconhecido, o Grande Mistério sem garantias
, ajude-me a aceitar as mortes que terei que experimentar enquanto estiver viva.
Ajude-me a ser compreensiva com as pessoas que estiverem passando por suas mortes pessoais, também. Que eu possa reconhecê-las e ouvi-las do modo como eu gostaria de ser ouvida. Que eu possa caminhar pelos lutos como você caminha pelos cemitérios, pelo que é escondido, pelo que não vejo, pelo que ficou esquecido.
Que eu possa olhar o que não tenho coragem de encontrar em mim.
Que eu aprenda a dizer Não.
Que eu possa amar.
Que eu ultrapasse o medo
Que eu consiga dizer o que desejo.
Que eu consiga me respeitar.
Ajude-me a compreender que a matéria iridescente dos limites tem o mesmo brilho da sua foice. Ajude-me a compreender que cada cabeça que você decepa é mais uma mentira que eu recuso largar.
Que eu possa dançar com você sobre o cadáver das minhas ilusões.
Kali Ma, Mãe da Verdade, Protetora de todas nós,
Desejo imitar as suas virtudes e ser um pouco como você. Dê-me coragem para ser quem sou.
É que às vezes eu esqueço, perdida nessa terrível fixação em agradar. Mahakali, Nossa Mãe, livre-me da vontade de ser agradável, aprazível, coerente, charmosa, comedida, aducada. Livre-me do vício de querer dizer sempre as palavras certas e me faça abrir a boca para enunciar
a coisa errada, inconveniente, verdadeira e luminosamente desconcertante.
Confesso que antes eu não entendia por que você tinha que andar por aí vestindo só uma guirlanda de caveiras e uma saia de membros decepados.
Agora te entendo mais. Quantas vezes precisamos dar um fim àquilo que não serve de verdade? Quantas caveiras você vai precisar pendurar no pescoço até que eu me aceite com honestidade?
Você, que é a senhora das verdades e dos lutos. Você, que compreende que a vida e a morte se encontram tantas vezes dentro de uma vida só
: a você, eu suplico
que as as minhas ilusões caiam por terra e todos os obstáculos ao amor verdadeiro sejam removidos sob a força de um
Não.
Ajude-me a encontrar-te nos lugares escondidos do meu coração que eu nem sei mais onde ficam - bem ali, naqueles cantos onde a destruição é sinônimo de recomeçar.
Uma mulher caminha sobre os escombros.
Não sabe bem para onde vai
mas amanheceu, ela se levanta, pega as coisas, uma bolsa, um casaco com estampa de tigrinho
prende o cabelo num coque alto
respira fundo
mira o nascente
dá o primeiro passo
não olha para trás.
Kali Ma e a reconexão
Nunca tive particular atração por Kali, uma deidade irada do panteão hindu e também presente (numa ou outra forma) dentro da tradição tibetana do budismo (Vajrayana).
Decidi pintá-la para entrar em contato com suas qualidades. No budismo, as deidades representam, em última instância, aspectos sagrados da nossa própria mente. Pintar Kali Ma foi um passo para me aproximar de territórios internos que não encontro facilmente. Que evito, na verdade.
Kali está nua, é linda, com um cabelão preto indomado que preenche o universo. Kali não está atada nem responde a convenções. Não tem medo do que acham, então sai por aí destruindo demônios - tudo aquilo que não tem verdade e que nos drena. Quando a situação fica muito grave, ela é quem precisa vir. Só ela serve - ela, que corta de uma vez com faca afiada. Sua ação não é raivosa; sua ação é uma expressão do amor. Kali é uma forma de energia necessária.
Kali Ma me ajuda a compreender limites. Ela é a força vital e amorosa que diz não. Acho que aprendi a dizer muito pouco não, mas existe Kali Ma neste planeta. Ainda bem.
Foi difícil pintar a Kali, mas também foi transformador e cheio de movimento. Enquanto pintava, tive que lutar contra minha tendência de deixá-la mais mansa, menos terrível. Observei minha vontade de querer abrandar sua expressão ou tirar a foice ensanguentada de uma das suas mãos.
Minha primeira Kali.
Pendurei a pintura ao lado da porta, perto da entrada de casa, num lugar onde sempre posso vê-la. Tenho esperança de que, se olhá-la muitas vezes, nos acostumaremos uma à outra e serei capaz de compreender as suas qualidades. Por um processo de osmose visual, tenho esta aspiração: um dia serei capaz absorvê-las dentro do meu corpo e do meu ser.
Notinhas
Neste mês de abril, as edições do Sofá foram temáticas e giraram em torno do tema Reconexão. Escrevi primeiro sobre a beleza como elemento de reconexão íntima. Na segunda semana semana de abril, apresentei a ideia de escrita reconectiva. A edição que você acabou de ler foi uma meditação sobre reconexão com aquilo que rejeitamos internamente. Eu gosto muito deste formato de editorias mensais - e você, o que achou? Me conta nos comentários?
Todas as ilustrações que estão no Sofá da Surina - incluindo a Kali - são obras minhas e estão à venda (original e prints). Detalhes por email - surinamariana@gmail.com
Sou autora de dois livros. Em formato físico, você encontra o 108 e O mundo sem anéis - aqui (entregas para todo o Brasil). Se preferir Kindle, você encontra meus dois livros no site da Amazon Brasil.
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Ela é a mais terrível e a mais interessante deusa do panteão hindu. Vontade de imprimir essa prece e fazer todos os dias!
"Livre-me do vício de querer dizer sempre as palavras certas e me faça abrir a boca para enunciar
a coisa errada, inconveniente, verdadeira e luminosamente desconcertante."
Uau!!! chegou na hora certa pra mim