Sinto muita saudade de mim.
É uma sensação constante que desperta assim que abro os olhos e que me habita ao longo do dia, todos os dias. A sensação fica mais forte quando estou envolvida nas tarefas domésticas, estas obrigações cotidianas intermináveis e infinitas que sempre detestei e que (acredito) odiarei até o fim dos dias.
Enquanto lavo a louça, sonho
daqui a uma hora isso aqui vai terminar e vou poder tomar um chá.
Quase no fim da faxina do banheiro, hoje à tarde, só conseguia pensar
se tudo der certo, às oito da noite vou estar sentada com a minha gata no atelier.
Eu tinha treze anos quando senti saudade de mim pela primeira vez e desde então esta vontade de ficar só comigo mesma faz parte do meu corpo como se fosse um órgão interno que ninguém mais além de mim consegue ver.
Quer dizer, isso é o que eu acho. A gente tem a ilusão de que consegue esconder nosso universo interno do olhar alheio, mas quem está próximo nos conhece de um jeito inevitável. Meu marido às vezes me arrasta para o supermercado ou para uma festinha
se eu te deixo solta você nunca sai aí do seu mundo.
Não sei se outras pessoas sentem o mesmo. Talvez você possa me contar algo nos comentários se passa por algo assim.
Esta é primeira vez que falo sobre isso. Apesar de nunca perguntar a ninguém sobre este tema, desconfio que outras pessoas secretamente também sintam saudades de si mesmas. Provavelmente é a isto que as mães de bebês se referem quando dizem preciso de tempo pra mim.
Pensando melhor, acho que todo mundo sente saudades de si, cada um à sua maneira. Alguns matam a saudade mais rápido ou na companhia de outros seres humanos enquanto outros, como eu, precisam de muito tempo com a própria solidão.
Aprendi a lidar com minha necessidade de reclusão passando períodos curtos do dia só comigo. Sento no atelier ou na varanda por uma ou duas horas, leio com a gata no sofá.
A minha vida atual de autônoma com baixos custos no interior de lugar nenhum tem suas vantagens. Uma delas é permitir este luxo.
Mas, verdade seja dita, sempre dei um jeito porque meu desejo de solidão vem como uma necessidade quase médica para que eu possa continuar sã.
Na adolescência, trancava a porta do quarto à noite. Na época de repartição pública, acordava mais cedo para tomar café com leite na cozinha antes do expediente e ficava acordada até mais tarde sem atender o telefone por um tempo quando voltava.
De vez em quando, entretanto, bate um desespero. Os compromissos sociais se multiplicam e os prazos e as reuniões e as mensagens. Tudo gira, os dias lotados e as informações e as tarefas e as contas e as novidades e as doenças e as notícias e providências urgentes de toda sorte.
Dizem que o tempo hoje em dia está mais acelerado. Deve estar. Em épocas assim, minha atenção se dissipa num redemoinho de opiniões e hábitos e rotinas até eu não saber mais onde o furacão acaba e eu começo.
Quando isso acontece, passar duas horas no sofá não resolve. Se a situação fica bruta, só tem um jeito: preciso me remover do mundo por um tempo.
Viajo para um lugar onde poucas pessoas me conhecem.
Levo poucas mudas de roupa, caminho bastante, como quando sinto fome. Lavo as roupas a mão, leio livros, escrevo. Escrevo muito, às vezes pinto. Medito pelo menos duas horas por dia.
Em pouco tempo já sei de novo quem sou e posso voltar ao mundo com um mínimo de lucidez.
Ano passado fiz isso duas vezes: na primeira, caminhei 35 dias sozinha até Santiago de Compostela (os diários da viagem você pode ler aqui). Na segunda, passei um mês na Índia participando de uma exposição e depois meditando no sul (os diários de viagem estão aqui).
Meu marido entende e não se importa.
Esta é uma das principais razões que explicam por que decidi casar com ele.
Gosto muito de sentir esta saudade e sei que ela me faz bem.
Sei também que esta saudade, silenciosa e escondida, desenhou a vida que levo sem que eu sequer me desse conta. Por exemplo: esta necessidade de estar só é uma das forças por trás do meu desejo de não ter filhos.
Digo assim mesmo - desejo de não ter filhos. Durante bastante tempo foi confuso; eu tomava de outra maneira que não era bem o que era. Passei quase a vida inteira sofrendo com a idéia de que me faltava o desejo de ter filhos, como se gerar e cuidar de filhos fosse um desejo natural e eu tivesse aparecido aqui neste planeta com um defeito de fabricação.
Aos quarenta e três, posso finalmente enunciar a verdade do meu coração. Sempre tive vontade de não tê-los. Todas as vezes que achei que estava grávida foi um pânico, não não não, até o resultado aparecer negativo no teste de farmácia.
Minha próxima retirada está se aproximando.
Escrevo esta edição tendo à frente uma lista enorme de tarefas. Uma destas tarefas consiste em escrever seis edições do Sofá da Surina nas próximas duas semanas. Quero deixar tudo pronto antes de partir.
(*Não consegui terminar tudo, claro. Ainda tem bastante coisa para escrever).
Se tudo der certo, você vai estar recebendo esta carta na sua caixa de email exatamente no momento em que começo a primeira sessão de um retiro formal de quatro dias aqui nas montanhas de Portugal. Dez dias mais tarde, vai ser a vez de pegar um vôo para o norte da Índia, onde fico até a primeira semana de junho fazendo um retiro fechado e depois escrevendo o manuscrito de um romance novo.
Em outra edição do Sofá, falei um pouco sobre algumas mudanças que eu queria fazer na newsletter este ano. Uma das mudanças é esta: desta vez, vou viajar sem a tarefa de escrever em tempo real sobre a viagem.
Acho que vai fazer bem pra mim e trazer novos ares pro Sofá. Continuarei a fazer anotações íntimas obsessissavamente num caderninho que talvez vire os relatos do Sofá mais pra frente - no meio da viagem, até. Vou deixar espaço pra tudo acontecer. Quem sabe? Pode ser que alguns Diários dos Himalaias apareçam por aqui durante meu tempo lá. Talvez depois. Talvez nunca.
Podem continuar mandando mensagens e comentários, porque eu adoro. Vou continuar respondendo quando estiver fora dos períodos fechados. E desde já peço desculpa pela demora e atrasos nas respostas.
Continuamos juntos nos textos, e mais. Em maio e junho, continuamos juntos telepaticamente.
Uma notinha
Quero contar para vocês uma coisa: se puder, assine o Sofá da Surina e as newsletters que você gosta de ler. Assinar é diferente de seguir! Aqui embaixo vai uma notinha explicativa que peguei emprestada da Paula Maria (Te escrevo cartas) sobre isto:
“Pra quem é novo na plataforma, tem diferença entre assinar uma newsletter e dar follow em alguém. Quando vc segue, vc não assina… ou seja, seu e-mail não está cadastrado e se eu sair da plataforma em algum momento, perdemos o contato.
O diferencial da newsletter é a construção de uma rede entre quem escreve e quem lê. Essa coisa de seguidor é herança de rede social, o que de certa forma está virando o substack.
Mas não deixe de assinar as newsletters que você admira… isso garante que quem escreve terá seu contato e, se desejar sair daqui, pode continuar te enviando conteúdo, independente da vontade dos donos das plataformas.”
Abril no Sofá
No mês de abril, as edições do Sofá da Surina foram especialmente escritas em torno do tema Retiro. Esta primeira edição é uma homenagem à solidão - esta palavra maravilhosa e tão mal-compreendida. Semana que vem é a vez de um texto no qual eu conto sobre como foi minha primeira experiência de ficar em regime de silêncio. Por fim, a terceira edição do mês é a vez de contar historinhas sobre coisas que me aconteceram e que aprendi nos inumeráveis retiros (formais) que já tive a chance de fazer.
Recomendações
Será telepatia? Em se tratando da bruxona Vanessa Guedes, é bem possível. Na última edição da newsltetter que escreve, a Vanessa discute Solidão de um jeito maravilhoso. Ah! Ela está com as inscrições abertas para uma oficina de escrita online focada em newsletters que vai rolar no dia 13 de abril, tá?
A última edição da Espiral, escrita pela Lalai Persson, foi uma das coisas mais bonitas que li esta semana:
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Sinto essa saudade desde criança e o período em que morei sozinha foi minha fase mais feliz da vida. Dá medo de falar essas coisas em voz alta e você definiu bem os pensamentos que aparecem, como o sobre ter filhos. Obrigada mais uma vez pelo texto maravilhoso e bom retiro! Beijo
Sempre senti esse desejo e um conforto em estar só. Venho de uma família grande, que passou boa parte da vida vivendo em casas pequenas. Curiosamente, o banheiro da casa virou refúgio e espaço de respiro. Fazer programas sozinha, viajar sozinha eram outros momentos de ficar comigo mesma. Mas nada de compara a morr sozinha e ser minha própria companhia. Gosto muito de ouvir música e podcasts, mas faz uns meses que tenho sentido vontade de realizar as tarefas do dia em silêncio. De dar vazão aos pensamentos, de voltar a atenção para o que estou fazendo, de sentar e só sentir o movimento da minha respiração... seu texto me contemplou de grandemente.