Minha casa em Portugal é um refúgio aonde aterrisso depois de trinta e oito horas enfiada num táxi, três aeronaves, quatro aeroportos, metrô, um trem e o carro da amiga.
Foram quatro semanas de Índia, divididas entre as cidades de Bodhgaya, no norte, e Tiruvannamalai, ao sul. De volta a São Martinho das Amoreiras, deito de barriga para cima no tapete vermelho da sala. Estou doente e delirante, o nariz entupido, uma tosse de cavalo, faz frio, meu marido trabalha em Las Vegas e Las Vegas dos cassinos e da grana me parece o lugar mais distante onde alguém pode estar neste momento.
A casa vazia, exceto pelos dois gatos filhotes me recebem deitados no sofá turquesa. Ele tem um olhar vago de quem preferia estar dormindo; ela está interessada na minha volta. Ele é enorme e cinza e fofo; ela é pequena, bicolor e atrevida. Ele é irresistível; ela, incontrolável. Haiku rapidamente desiste de mim e vai descansar debaixo da cama. Ela pula na minha barriga e me encara com os olhos verdes bem abertos:
-Conta conta conta. O que que aconteceu lá na sua viagem?
Não sei por onde começar, Lili. Sei lá, você é uma gata, e os gatos já vêm pra Terra completos. Será que você vai conseguir entender o meu problema?
Vou começar assim: os gatos são os bichos mais budistas do mundo. Eu, por outro lado, sou um animal instável cheio de furos por dentro e dona de uma espinha tão dura que mal consegue sonhar a elasticidade da sua. Minha mente também é feito uma parede; mesmo depois de dez anos meditando, não consigo passar um dia inteiro no sofá turquesa deixando as coisas serem como são. Preciso entender, medir, julgar, tirar conclusões.
Acho que é isso que me fez viajar. Lembra quando você lambeu o sapo e ficou de olho virado três horas na varanda? Então. Viajar é a mesma coisa pra mim. Vou pra longe que é pra enfiar umas aventuras esquisitas dentro dos buracos, sentir que estou completa e colorida por um mês, assistir o mundo em volta sem ter que dar sentido a nada. Depois volto pra casa e observo as cores desaparecendo enquanto planejo a próxima viagem. A Índia é linda. Até os cabras se vestem de roupa brilhante e as comidas têm tanto tempero que não dá pra saber onde começa a canela e onde termina o cardamomo.
Pois é, minha Lilipot, a Índia é linda e achei que ia ter um monte de coisa pra te contar na volta, por isso é um susto descobrir que estou sem histórias. Tento levar meu cérebro pros restaurantes e pras pessoas, mas o que volta é borrão. Não lembro dos cheiros nem das comidas. Acho que nem fui pra Índia.
Acho que fui pra Índia.
Acho que o avião pegou uma rota secreta e me desembarcou numa Índia escondida entre as fibras do espaço-tempo, uma Índia-máquina trituradora que me destroçou e cuspiu os ossinhos pra fora. Tudo que aconteceu lá, aconteceu dentro de mim, em experiências que não dão história.
Deixa eu te contar tentando não ser insuportável porque (pra você eu posso dizer a verdade) relato de experiência mística é um treco horrível que devia ser proibido.
Em Bodhgaya, por exemplo, visitei a árvore onde o Buda se iluminou. É a árvore mais bonita do mundo, mas quando busco memórias de Bodhgaya a árvore me aparece fina como um fantasma. É uma imagem sem força que me atravessa sem se fixar. O que lembro com força, isso sim, não é algo de se ver. Lembro de mim mesma embaixo da árvore. Lembro de um campo dourado se fazendo no ar enquanto os quinhentos monges recitavam preces por duas horas de manhã e outras duas à tarde - um campo que desaparecia assim que a recitação terminava.
Quando todo mundo ia embora, eu colocava minha almofadinha debaixo do braço, tomava um chai e ia pro meu quarto.
Deitada na cama, longe de tudo, descobria que o campo dourado continuave existindo em mim.
Ouvi um podcast estes dias que falava sobre peregrinação e fez todo o sentido. Acho que não tenho histórias de viagem porque ir pra Índia desta vez não foi bem uma viagem. Uma peregrinação é um tipo de prática que a gente faz encontrando espaços físicos que na verdade não são espaços físicos
: na peregrinação, a gente recebe ensinamentos diretamente do lugar. Os lugares são professores.
Mas isto não é exatamente o que diziam no podcast. É a minha versão, e ela pode estar
errada.
Certa ou não, acredito que agora conheço um pouco melhor o brilho que cruzou o universo quando o Buda se iluminou embaixo da Bodhi Tree. O brilho é um ensinamento dourado que Bodhgaya dividiu comigo e provavelmente com outras pessoas que estavam em volta.
E isto é muito bonito.
É tão bonito como uma vela acendendo a chama na outra sem gastar fogo. A lembrança deste ensinamento sem nome é o que aparece em mim toda vez que penso na bodhi tree. Eu penso e imediatamente confirmo que o ensinamento já está em mim. Eu não preciso ir a nenhum lugar agora, eu posso ficar no sofá turquesa com você Lilipot, só com essa sensação, posso ficar no sofá pra sempre, até morrer, e quando eu morrer o corpo vai ficar na Terra, apodrecendo o estofamento, mas Bodhgaya não. De Bodhgaya eu nunca voltei, Bodhgaya vai
comigo.
Notinhas
Peço desculpa pelo atraso do Sofá da Surina esta semana, mas esta foi a edição mais difícil que escrevi desde que comecei a newsletter em março de 2021. A experiência na Índia foi muito intensa para o meu corpo. Sinto que passei os últimos trinta dias pendurada em outra dimensão alternando caganeira com gripe.
De agora até o final do ano as edições do Sofá da Surina (espero!) voltam a à sua caixa de entrada aos sábados de manhã.
Se você acabou de chegar, esta é a última edição dos diários que escrevi em tempo real durante a minha viagem para a Índia, entre outubro e novembro de 2023. As outras edições estão aqui:
Os diários de Bodhgaya, parte 1
Os diários de Bodhgaya, parte 2
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima
Suas palavras me afetam em cheio. Obrigada. Se cuida! 😘
Muito bom.