Uma nuvem nunca morre.
É verão no hemisfério norte. Olho para o céu com o caƒé com leite na mão à procura de um sinal de chuva, mas não encontro nada. A resposta vem de baixo:
Se você olhar para a xícara, a nuvem está dentro.
Boiando no quentinho marrom. Intacto, encontro o insight de Interser. O café com leite é o céu que recebeu o calor do sol que fez evaporar o lago que virou nuvem que choveu a água que entrou na chaleira e dentro dela, junto do tempo e do coador, parou aqui.
A nuvem do céu vive dentro da minha caneca.
Quero falar de Interser porque é uma palavra que tem o poder de tornar a vida ordinária suportável. É como a morte, essa senhora que nos dá perspectiva do que realmente importa. Se pudesse abrir esse momento como se ele fosse uma caixinha, o que você encontraria?
Quando entro pela porta do interser, desaparece a cadeira na varanda. Desaparece a mulher de 1.62m, nascida em Belém, 43 anos. Dentro do corpo encontro minha mãe e meu pai, as patas do cachorro que morreu ano passado, a grama onde o Buda sentou às 7:45 para dar os ensinamentos que 2500 anos depois voaram através do tempo e das palavras escritas num papel até chegar a mim. Sou imediatamente transportada para o meu lugar verdadeiro,
essa fatia de pão que você come contém o cosmos inteiro.
Neste 2023 Thich Nhat Hahn, o monge zen-budista que formulou o insight de Interser, faria noventa e cinco anos. Ainda não consigo acreditar que ele deixou este lado da vida há mais de um ano. Exilado na França por trinta e nove, a ordem monástica que criou junto de seus alunos leva o nome do ensinamento que, segundo ele, penetra as fronteiras mais profundas da realidade. Ordem do Interser.
Sentado num salão com um grupo de crianças, Thay - como é chamado carinhosamente - conta que mistura chá na tinta toda vez que vai fazer caligrafia. A nuvem que está no chá vira uma obra no final. Ele levanta a folha e mostra o que escreveu:
as lágrimas que derramei
ontem
viraram chuva
Interser, então, vai além da continuidade entre as formas. Não é só a nuvem que vira água que se transforma em sangue dentro de nós. A tristeza pingando do olho também. Interser fala dessa linha que liga nossa presença com tudo que acontece ao redor num nó infinito de coexistência.
Estamos dentro uns dos outros.
O ensinamento vai em outras direções que vou deixar para outra vez porque agora quero ficar aqui, neste lugar que é o da importância da nossa presença para o mundo. Penso nisso agora que Thay já não está mais perto. Sempre tive esse sonho de encontrar com ele, o monastério é pertinho, no sul da França, mas já não dá mais. Em 2018 ele deixou o exílio e partiu para fechar o círculo que começou no Vietnã, dentro do templo em que foi ordenado monge. "Quero viver no Vietnam, na terra dos meus professores ancestrais. oferecer minha presença aos irmãos de ordem monástica (...) até que este meu corpo se desintegre", ele escreveu numa carta em 2018.
Em janeiro de 2022, virou nuvem.
Um pedaço de mim sente raiva por ter perdido tempo. Outro pedaço aceita, sabendo que não existe falta. Thay e todas as coisas que nos atravessam vivem dentro. Quer a gente queira, quer não
uma nuvem nunca morre.
Notinhas
Se a leitura de hoje te pareceu familiar é porque você provavelmente já leu este texto antes. Esta edição do Sofá da Surina é uma versão editada da que foi publicada originalmente em 2021. Naquela época o Sofá ainda estava no começo, éramos poucos assinantes, então não foram muitos os leitores que receberam esta edição. Gosto muito deste texto, por isto quis dividi-lo com vocês que ainda não leram.
Thich Nhat Hanh esteve comigo ao longo dos 35 dias da caminhada a Santiago de Compostela. Thay era adepto das caminhadas meditativas, uma prática comum no zen-budismo: caminhar bem devagar, prestando atenção a cada passo. Em vez de sentar, você pratica enquanto o corpo se move. A voz dele me lembrou de pisar leve e prestar atenção ao que estava ao redor em vez de mergulhar para dentro da minha cabeça maluca. Onde quer que você esteja, obrigada, Thay.
Tudo caminho
Se você está chegando agora, quero te contar que acabei de terminar uma caminhada de 35 dias até Santiago de Compostela. Comecei minha viagem na França, e esta é a série de textos que publiquei no último mês contando da viagem:
Passei uma tarde lendo os relatos da Vanessa Guedes sobre a peregrinação a Santiago de Compostela assim que cheguei de viagem. Ela fez o Caminho Português, que sai de Porto; aqui embaixo está o meu preferido. Você encontra toda a série de relatos da Vanessa na página da Newsletter dela, a colorida Segredos em Órbita:
Tudo Thay
I have arrived, I am home (legendas em português), lançado no começo do ano, conta a história do retorno de Thich Nhat Hanh ao monastério onde foi ordenado, no Vietnã.
Uma nuvem nunca morre: você encontra aqui o vídeo em que Thich Nhat Hahn apresenta o ensinamento sobre Interser para crianças (legendas em português disponíveis).
Walk with me (Max Pugh e Marc J. Francis) é um documentário de 2017 que acompanha a vida da comunidade de Plum Village, o monastério francês onde Thay viveu até 2018. O filme desdobra o tema da atenção plena - a habilidade de se concentrar no momento presente -, e vai costurando a história com passagens dos diários de Thich Nhat Hahn.
(Thich Nhat Hahn, 1926 - 2022)
O corpo da natureza é o nosso corpo. Zen nature é uma série em andamento a partir da observação da natureza e inspirada em Interser. Sobre o papel-cartão cinza as linhas são as mesmas, as cores se repetem, mas cada uma faz seu movimento em uma forma diferente. O Enso brilha, esse círculo da iluminação, relembrando do que somos de verdade.
*O Sofá da Surina é uma Newsletter que chega até você aos sábados de manhã, exceto no último fim de semana do mês. Hoje era para ser dia de folga, mas quis trazer o Thich como fechamento à série sobre o Caminho de Santiago. Semana que vem eu descanso; nos encontramos de novo no dia 8 de julho.
Ah! E que todos vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Surina, vou te falar nesse texto sobre outro texto seu que acabei de ler: o que vc postou no final do ano. Eu resolvi procurar algum texto seu que eu ainda não tivesse lido, visto que comecei a te seguir esse ano. E encontrei esse, sobre metas para 2023. Achei tão lindo o final que parei para respirar uns instantes, para deixar ele assentar em mim. Aí, querida, peguei um papel e caneta e comecei a escrever. Gosto muito de escrever e escrevia bastante, mas, há um bom tempo, não escrevia nada. às vezes, me perguntava por que eu nunca mais tinha pegado caneta e papel. Pois escrevi, inspirada por suas palavras, um tanto de folhas, sem parar. Como na escrita criativa sobre o que vc já deu tantas dicas. Então, muito obrigada por me inspirar e fazer brotar umas palavras e ideias e pensamentos de dentro de mim!
Bom descanso, andarilha. 💞